“No almoço do Círio há representações dos três grandes grupos étnicos que deram origem à sociedade brasileira. Por exemplo, o pato no tucupi faz menção aos indígenas, a maniçoba aos africanos e o bacalhau aos portugueses. Essas nossas práticas culturais existem desde a era colonial e, como Círio também começa nesse período, ele mantém muitas das tradições dessa época e vai apenas acrescentando algo a mais”, conta Heraldo Maués, historiador, antropólogo e professor emérito da UFPA (PPGSA).
Quando chega o mês de outubro, em Belém do Pará, é quase impossível não lembrar do Círio de Nazaré. A festa católica é mais do que um fenômeno religioso. Ela faz parte da cultura local e influencia na vida de todos os belenenses, mesmo que indiretamente. São vários os elementos que compõe a festa, conhecida por muitos como o “Natal dos paraenses”, como a berlinda florida, a corda, os promesseiros, os objetos de cera e de miriti, o parque de diversões, os papeis picados e o aguardado almoço.
Um momento de reunião entre familiares e amigos, todos ansiosos pela maniçoba adubada, pelo pato no tucupi com muito jambu e outros alimentos típicos da região. “O almoço do Círio trata-se de um banquete sacrificial em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. Nós pensamos que os sacrifícios desapareceram, mas eles continuam existindo. Os patos são os principais a morrerem”, explica o professor Heraldo, que é um dos convidados desta edição especial do UFPA Pesquisa, sobre Cultura material e imaterial – A comensalidade no Círio de Nazaré.
Quem participa do programa, também, é o professor doutor Anselmo Paes, pesquisador-antropólogo do Sistema Integrado de Museus e Memoriais do Pará (SIM/ Secult-Pa) e integrante do Grupo de Pesquisa Antropologia, Religião e Saúde da UFPA. De acordo com o professor, o tema da alimentação tem alcançado um importante espaço nos estudos da antropologia cultural, pela possibilidade de se construir relações em torno desses alimentos. É o que a antropologia chama de comensalidade, em que a alimentação se trona um eixo central na construção dos sentidos gerais de um povo ou de uma sociedade.
“No caso do almoço do Círio, você está lidando com a identidade do povo paraense. Não importa se você se alimenta ou não daqueles itens. É muito difícil você não se ver englobado nessas relações. E o almoço do Círio acaba sendo um momento de construção de outros sentidos para além do ato trivial de se alimentar. Neste ponto, o tema é pertinente e essencial para se compreender o que é a cultura paraense, a cultura brasileira e a construção dessas identidades”, explica o professor Anselmo Paes.
E para rechear ainda mais esse programa convidamos, também, professor doutor Luis Otávio Airoza, da Faculdade de História da UFPA, no campus do Tocantins/Cametá. Ele é pesquisador da história dos sentidos e fala da relação entre o paladar, a história dos hábitos alimentares do paraense e o Círio, além de analisar as relações entre o material e o imaterial, a partir de estudos da neurociência, que contribuem, por exemplo, com o conceito de acoplamento estrutural.
“Por exemplo, a maniçoba é algo palpável, mas você sente o aroma dela. Há uma sensoralidade olfativa, uma sensoralidade visual, o que não são efetivamente materiais. Porém, quando você recorre a alguns consensos da neurociência, o próprio olfato recorre a algumas partículas de átomos que são materiais. Então, a fronteira entre o material e o imaterial é muito tênue. Pensar o almoço do Círio é pensar essa materialidade e essa imaterialidade articuladas, em certa medida”, pondera o professor Airoza.
Os professores falaram, ainda, do valor da alimentação dentro das práticas culturais da sociedade e da necessidade de a pesquisa refletir sobre outros elementos e dinâmicas relacionados ao Círio de Nazaré.
Texto: Hojo Rodrigues
Imagem: Cristino Martins/Arquivo Agência Pará